“Your Queen is a Reptile”, uma máquina do tempo jazzística

A programação do Nublu Jazz Festival 2018 nos apresentou a banda Sons of Kemet, mais um grupo que tem composto a atual onda de jazz. Originalmente formado como um quarteto em 2011 por Shabaka Hutchings no sax, Oren Marshall na tuba, e Tom Skinner mais Seb Rochford nas baterias, é praticamente uma banda de rock que trocou as cordas pelos metais e pôs uma bateria a mais, o que fica evidente depois de uma boa escutada nos dois primeiros álbuns, Burn e Lest We Forget We’reHere. O nome é uma referência a como os nativos do antigo Egito se referiam a seu país.

No finzinho de março passado, o jazz que rodou as Américas e a África antes de dar um pulinho em Londres, residência dos caras, se manifestou de forma tão afro-espiritualista quanto a de Coltrane e tão política quanto a de Gil-Scott Heron no terceiro álbum da banda. Dois singles foram lançados de antemão, My Queen is Ada Eastman e My Queen is Harriet Tubman. Um manifesto em forma de clipe promocional, praticamente uma intervenção musical virtual, fez-se presente também. O nome do álbum: Your Queen is a Reptile, uma referência tanto às teorias da conspiração que dizem que a família real britânica é na verdade uma raça alienígena reptiliana quanto ao fato de essa elite – assim como a maioria das elites do mundo – não enxergarem os demais humanos como gente, ou melhor, como iguais. Então a gente tem um terceiro álbum, lançado pela mesma Impulse! Records que vem erguendo monumentos do jazz desde 1960, uma provocação à existência de um tal de “Reino Unido” em pleno século XXI e em época de casamento real e o uso de diferentes tecnologias e linguagens – linguagem é tecnologia? acredito que sim – artísticas para dar vida a um ato político. Estamos, então, diante de uma bomba sonora grafitada nos nossos ouvidos.

O som – conteúdo que impulsiona isso tudo – é fantástico, tanto pela estrutura das músicas, que carregam aquela ideia de caos ordenado da época da transição do bebop para o free jazz, quanto pela estranheza da própria formação da banda, que hoje conta com Theon Cross no lugar de Oren Marshall. Está certo que colocar nesses termos pode soar totalmente impreciso e exagerado, mas ouvir a dança entre os sopros enquanto as peles cantam o ritmo ao longo das 9 faixas é, no mínimo, curioso, tão curioso quanto presenciar uma manifestação cultural tradicional pela primeira vez. Falando nisso, vale lembrar que os escravos dos Estados Unidos foram afastados dos tambores justamente por conta de suas tradições religiosas e musicais, um resgate presente neste álbum através de linhas de bateria que remetem à influência caribenha na formação do jazz.

Mas a maior graça de todas nem é essa, é o porquê desse álbum e como ele se faz necessário nessa época. Cada faixa carrega o nome de alguma personalidade feminina afrodescendente que é tratada como rainha por sua grandeza na luta contra o racismo desde séculos passados. Algumas entre elas: Harriet Tubman, homenageada por um dos singles, fugiu de sua condição de escravizada, ajudou na fuga de outros mantidos como escravos no estado de Maryland, nos EUA, e ainda atuou na luta a favor do voto feminino no país; Mamie Phipps Clark, que dá nome a um ragga-jazz genial, foi uma psicóloga social responsável por trabalhar a autoconsciência de crianças no Arkansas de meados do século passado, um trabalho necessário até hoje em todas as Américas; Doreen Lawrence, Nanny of the Maroons (Rainha Nanny) foi uma mulher ashanti, povo originário da atual região de Gana, que fugiu da escravidão na Jamaica e construiu a luta quilombola do país no século XVIII ajudando a libertar escravos das plantações.

Trazer esse conhecimento para uma época de tanta efervescência política em que as lutas contra as diferentes opressões de nossa sociedade andam tão em alta e que temas como racismo e feminismo têm sido debatido avidamente é uma postura a se admirar, expressa da arte do encarte até a última palavra proferida. Com tanto a dizer, é um álbum majoritariamente instrumental e as únicas três faixas com vozes são declamações que se apresentam como um rap desconstruído à suas raízes nas décadas de 1960 e 1970. Digo que é uma forma eficiente de transmitir a mensagem.