As ações dos diversos Occupy, dos Anonymous, de Edward Snowden, WikiLeaks e demais manifestações políticas reativas às crises do início do século inflamaram a discussão sobre controles privados e estatais de dados pessoais na Internet e caminhos alternativos de organização online autônomos e que garantam privacidade, preocupações antes levantadas pela Free Software Foundation e pela Eletronic Frontier Foundation. Vendo eventos como a cooptação da Primavera Árabe e das Jornadas de Junho, ascensão mundial de um neofascismo e os debates sobre guerra híbrida e big data, percebo que o assunto não é mais tratado como paranoia e atualmente tem sua importância reconhecida, ainda que tardia. Uma amostra disso são as ondas migratórias para o Signal e o Telegram – plataformas abertas de mensagens instantâneas alternativas aos serviços proprietários que conhecemos e deixamos que se alimentem da violação invasiva das nossas informações pessoais – quando eclode algum escândalo ciberpolítico. Entre as estrategias para se esquivar dos estilhaços de uma sociedade em avalanche estão: boicotar filmes, séries, marcas e aparelhos eletrônicos; abandonar as redes sociais na esperança de reduzir a pegada digital e o ruído mental da zona virtual;  mudar de cidade, estado ou país, em busca de refúgios utópicos e redutos que concentrem pessoas e ações majoritariamente na contramão dos fluxos totalitários gananciosos de estranhas similaridades com a globalização forçosa do capitalismo atual. Contudo, precisamos manter o olhar focado no que ainda há a ser preservado, cultivado, ressignificado e ocupado nos territórios em que estamos – digital ou material – de forma que continuem existindo as pontes entre passado e futuro nas culturas das próximas gerações e que as disputas por espaços e narrativas não sejam perdidas. Afinal, os conflitos não deixam de ser lugares de trocas dos quais surgem novas formas de existir.

Sobre as lutas e narrativas afro-brasileiras localizadas onde as faces mais violentas do conservadorismo se mostram sem pudores, como o centro-sul do país com seus polos de moralismo legitimando as violências estruturais e institucionais, muito do que existe de cultura de resistência sofre ataques frequentes dos setores públicos e privados e só permanece até hoje devido a constantes esforços de resgate cultural, como é o caso do jongo e do samba de bumbo. O abandono destas regiões pode reduzir os círculos que sustentam essas manifestações, que existem há tempos e precisam se manter sólidas e em expansão. Eu escrevo esse texto de Campinas, provavelmente a última cidade do mundo a “abolir” a escravidão.
Se quisermos estender nossos ritos, registrar nossa música, o que chegou até aqui pela tradição oral e seguir na contramão do controle cibernético e do discurso hegemônico temos o poder de usufruir de iniciativas tecnológicas livres, descentralizadas e versáteis que compõem um cenário de redes e mídias abertas mais sólido que o da década passada. Coletivos, grupos e associações que constroem um ciberativismo em contato com o mundo além do código binário existem há alguns bons anos já e ajudam a promover essa integração entre tecnologias e as militâncias da vida real para aumentar o seu alcance.

Posso citar o Riseup, coletivo de Seattle formado em 1999 na época das manifestações contra o encontro da OMC (Organização Mundial do Comércio) com o foco em fornecer formas seguras de comunicação a ativistas,  assim buscando garantir liberdade de expressão. Oferece serviços de e-mail, listas de discussão, VPN e é utilizado por midialivristas ao redor do globo. Seguindo a mesma linha, há o projeto italiano Autistici/Inventati (A/I), criado em 2001 por militantes da causa autônoma anticapitalista e que apresenta opções semelhantes as do anterior, inclusa a criação de sites e blogs. Para estes, disponibilizam também a plataforma Noblogs, onde o A/I mantém o seu próprio. Com base em Amsterdã, o portal Disroot funciona um tanto diferente: redireciona visitantes para soluções livres, abertas e descentralizadas já existentes que podem ser acessadas com uma conta própria ou com um e-mail fornecido pelo portal, como mensageiros, redes sociais, armazenamento em nuvem, entre outros. É como se fosse uma versão enxuta da iniciativa francesa Framasoft, gerida desde de 2001 por pessoas hoje ligadas à educação popular e que mantém ferramentas próprias e uma lista de alternativas às disponíveis pela Google, Microsoft, Facebook e demais gigantes da tecnologia. Para conhecer ações práticas envolvendo tecnologia livre, uma referência é a Casa de Cultura Tainã. De reconhecimento internacional, foi fundada em 1989 em Campinas e incuba e aduba diversas manifestações culturais pela cidade e pelo país, utilizando software livre sempre que possível. Integra a Rede Mocambos, formada por comunidades afro-brasileiras, indígenas, latino-americanas e africanas e cuja produção é armazenada na Baobáxia, ferramenta que integra o acervo cultural digitalizado de diferentes localidades, remotas ou não. Outra possibilidade é acompanhar o projeto WikiAfrica, responsável por realizar eventos em que jovens em África criem e editem artigos na Wikipedia – também baseada em software livre, compartilhamento de informação e conteúdo de licenças abertas, assim como a Mozilla. Uma forma de vivenciar tais filosofias é conhecendo uma CryptoParty, circuito mundial de feiras e festivais voltados para diferentes questões orbitando essa problemática da privacidade digital, representada no Brasil pela CryptoRave em São Paulo e pela CriptoTrem em Belo Horizonte.

Acredito que a falta desse domínio digital e tecnológico venha a representar uma dificuldade das lutas populares frente ao avanço desenfreado do fascismo e do corporativismo agora em nossa era. Criar servidores, conectar diferentes redes de pessoas entre si, montar rádios livres, usufruir de softwares abertos, assim como buscar projetos que se apoiem nos preceitos discutidos aqui são atitudes que podem servir à causas urgentes no atual cenário nacional. Cuidar da nossa comunicação e garantir a segurança das informações através de um empoderamento tecnológico aberto e distribuído vai alimentar manifestações que se valem da tradição e da ancestralidade.